O que é Direito 4.0
O Direito sempre se posicionou como uma profissão tradicional e conservadora. Não é para menos, trata-se de um dos segmentos profissionais mais antigos da humanidade, remontando há mais de dois mil anos. Inclusive um fator significativo que proporcionou diferenciação para as civilizações foi justamente o advento do Direito. Com embasamentos, conceitos e prerrogativas seculares a prática jurídica sempre foi pouco afeita a mudanças.
No entanto, algo mudou na última década. E não se trata apenas de uma pequena atualização ou inovação, mas de uma verdadeira revolução. A essa completa mudança de paradigmas que traz a consigo uma nova onda de tecnologias, métodos, conceitos e práticas ganhou a nomenclatura de Direito 4.0 em alusão às tendências da Indústria 4.0 típicas da Transformação Digital.
O que é Direito 4.0 ?
Não existe uma resposta simples e objetiva a essa questão. O atual cenário de alta complexidade que envolve todos os aspectos da sociedade carrega consigo definições muita mais abrangentes e multidisciplinares do que se acostumou até o final do século XX. As bases desse movimento certamente começaram a ser construídas por volta da década de 1990, quando a digitalização forçou os advogados a abandonarem suas amadas máquinas de escrever para adotarem processadores de texto e planilhas em computadores frios e sem personalidade. Mas ainda assim se tratou apenas de uma mera mudança de meio: saiu do meio físico para o meio informatizado.
A verdadeira revolução ainda demoraria cerca de duas décadas, quando a internet nos brindou com o meio digital. Com a adoção das tecnologias digitais se descortinou uma nova realidade para advogados, departamentos jurídicos e escritórios de advocacia: a automação. A prática de agregar velocidade e agilidade a um trabalho de qualidade se tornou mandatória. E mesmo assim a automação é muito mais do que apenas contratar soluções tecnológicas. As ferramentas, práticas e processos adotados devem atender ao fluxo de trabalho e à cultura do escritório para atingirem os objetivos de otimizar a produtividade e melhorar a prestação de serviços jurídicos aos clientes.
Em suma Direito 4.0 é a Transformação Digital aplicada no universo jurídico. A primeira manifestação em mapear e organizar esse novo cenário do mercado jurídico foi do professor britânico Richard Susskind. Em 2013 ele publicou o livro “Tomorrow’s Lawyers” que hoje é considerada a principal obra sobre o futuro da Advocacia.
Os pilares fundamentais do Direito 4.0
Questões complexas exigem múltiplas respostas simples! A partir dessa premissa se entende que um conceito complexo como o Direito 4.0 não pode ser definido por uma sentença absoluta. A fim de entender a fundo a Advocacia 4.0 é necessário decompor em diversos pilares fundamentais que a compõe.
Megatendências
São movimentos socioculturais que indicam novos hábitos e comportamentos e com isso influenciam as sociedades, a cultura, a economia a tecnologia, a comunicação, o entretenimento, a educação e o consumo. Essas influências perduram por períodos razoavelmente longos, por isso não podem ser confundidas com modas passageiras. As megatendências são mais amplas do que tendências isoladas, acontecem por períodos mais longos e promovem transformações socioculturais mais profundas e simultaneamente em diversos aspectos da sociedade.
Como as megatendências são forças poderosas e transformadoras que podem mudar drasticamente a trajetória da economia global, elas acabam mudando as prioridades das sociedades, impulsionando a inovação e redefinindo os modelos de negócios. Então no âmbito das empresas e dos escritórios jurídicos, as megatendências alteram profundamente as estratégias de criação de novos produtos e serviços, as cadeias de produção e distribuição e, consequentemente, os hábitos de consumo.
Tecnologias Transformadoras
De modo geral tecnologias abrangem toda e qualquer invenção humana que funcione como uma ferramenta ou recurso facilitador para a realização de alguma atividade. Tecnologia Transformadora é aquela que substitui alguma situação já bem estabelecido, modernizando de forma radical a sociedade e os hábitos em geral. Portanto, é diferente das inovações incrementais que vão provocando mudanças gradativas ao longo do tempo.
A internet trouxe uma série de tecnologias que parecem ter saído diretamente dos filmes de ficção científica. Aplicadas ao Direito temos a automação, Inteligência Artificial, computação em nuvem, simulação de ambientes virtuais, BlockChain, Criptoavtivos, NFTs e Metaverso.
Legal Operations
É o conjunto de atividades de negócios, tecnologias, processos e pessoas que maximiza a capacidade de uma equipe jurídica, a qual atuará na expansão do negócio da banca. Essa área diz respeito a uma série de atividades operacionais e boas práticas dentro da gestão administrativa do escritório. Fluxos, processos internos, pessoas, clima organizacional, tecnologias, indicadores, dashboards, precificação, orçamento, controle financeiro, marketing e gestão de pessoas são os principais.
Gerenciar tudo isso requer uma ampla combinação de habilidades e ações, tais como planejamento estratégico, mapeamento de processos, gestão da mudança, gerenciamento financeiro, gerenciamento de fornecedores, tecnologia, data analytics e, principalmente, o engajamento de pessoas.
Customer Centricity
Resumidamente significa oferecer uma ótima experiência ao consumidor desde que ele tome consciência da Marca até a efetivação da compra. Entender os desejos, preferências e comportamentos dos clientes agora é essencial para entregar a total satisfação.
Legal Design / Visual Law
É uma aplicação dos conceitos de design centrado em pessoas para tornar os serviços jurídicos mais humanos, utilizáveis e acessíveis. É uma forma de repensar como são entregues os produtos e serviços na área jurídica. Na prática significa redigir documentos, contratos e peças jurídicas com linguagem acessível, diagramação bem estruturada dentro das normas ABNT e utilização de elementos visuais como tabelas, gráficos e imagens.
Vale destacar que a abrangência da abordagem do Legal Design não se restringe tão somente a contratos e petições iniciais. É necessário que o método inovador seja aplicado também a acórdãos, ementas, doutrinas, jurisprudências, decisões, normas sociais, políticas e outros tantos ordenamentos jurídicos.
Legal Analytics
É uma aplicação do Business Intelligence direcionada ao segmento específico do Direito. A disciplina de BI é composta por processos, métodos, tecnologias e algoritmos para coletar informações em fontes confiáveis, armazenar em locais controlados, organizar em dados estruturados ou não estruturados, identificar padrões e, por fim, construir uma base sólida de informações para analisar e transformar em informações e conhecimentos.
No direito as aplicações diretas do BI se deram em duas instâncias. Dentro do escritório, através da volumetria que se ocupa em mensurar a produtividade da produção jurídica. Externamente, a Jurimetria é um conjunto de técnicas para utilizar estatística aplicada ao Direito no sentido de tentar prever resultados e mapear probabilidades a partir de doutrinas e jurisprudências para elaborar caminhos e estratégias nos processos jurídicos.
Contencioso e Litigation 4.0
Dentre os métodos alternativos de resolução consensual de litígios, destacam-se a arbitragem, mediação, conciliação e negociação, que agora também podem ser realizados de forma online. As plataformas de resolução de disputas online permitem que as partes entrem em contato virtualmente com validade jurídica. Algumas plataformas incluem um terceiro mediador para auxiliar na pacificação do conflito.
Essas plataformas online apresentam benefícios significativos em relação aos métodos tradicionais, sendo mais acessíveis financeiramente e promovendo maior eficiência ao suportar várias negociações simultâneas.
Uma outra característica inovadora do Litigation 4.0 é o Financiamento de Litígios, onde terceiros financiam uma das partes em uma demanda judicial, assumindo o risco de não reaver os valores em caso de derrota no litígio. Essa modalidade difere do empréstimo bancário tradicional, pois o financiador só recebe uma participação nos ganhos do litígio, ao invés de cobrar juros.
Justiça Aberta / Open Justice
A ideia central é promover transparência no judiciário de modo que se torne realmente acessível a todos os cidadãos. Afinal processos digitais, estatísticas gerenciais e virtualização das cortes automaticamente deveriam estar relacionados à democratização do acesso à Justiça.
Ser mais transparente significa que os dados usados pelo Judiciário para funcionamento interno, ou compartilhados entre as partes envolvidas, devem voltar para a sociedade.
No Brasil, esse é o papel que o portal Justiça Aberta desenvolve. Em paralelo às iniciativas de digitalização, o Programa Justiça Aberta foi criado como medida de prevenção à corrupção, controle jurisdicional e transparência. Entre outras coisas o sistema encampa o controle de produtividade dos magistrados de 1º e 2º graus, das serventias judiciais e extrajudiciais e ainda fornece informação para diversas pesquisas e levantamento de dados.
Ecossistema de Inovação no Mercado Jurídico
O Direito 4.0 trouxe, não só novas tecnologias, como novos conceitos e práticas inovadores. Sim, os modelos de negócios focados em inovação e escalabilidade – conhecidos como startups – chegaram ao mercado jurídico. E nessa seara adquiriram um nome exclusivo: LegalTechs. Ou LawTechs. Teoricamente não há nenhuma diferenciação conceitual entre ambos os termos.
Pode-se definir LegalTech como uma startup com modelo de negócios escalável e inovador, que desenvolve produtos e serviços para o universo jurídico, criando e entregando soluções de base tecnológica com o intuito de melhorar o setor. Vale ressaltar que estes produtos e serviços não são meramente programas genéricos adaptados. Estamos falando de softwares e ferramentas criados exclusivamente para o mercado jurídico. Consoante a essas premissas, o foco das LegalTechs consiste em identificar demandas, deficiências e dificuldades do tanto do universo jurídico quanto das esferas do judiciário.
O mercado nacional já vem se organizando em torno do assunto através de entidades como a AB2L – Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs. A entidade que tem como missão apoiar o desenvolvimento de empresas, fomentar o crescimento do setor e estimular as melhores práticas profissionais já contabiliza mais de 200 startups jurídicas em operação.
Desafios do Direito 4.0 para os Advogados do Futuro
O Direito 4.0 está muito bem conceituado e embasado e já se faz presente em muitos escritórios ao redor do mundo. Porém isso não significa que é um conceito simples de implementar para todas as bancas. Existem barreiras tecnológicas, financeiras e principalmente culturais. É importante conhecer estes desafios, pois o planejamento da jornada precisa conter ações e estratégias para superá-los.
Inovação
Muito se fala em inovação atualmente, mas poucos compreendem o real significado desse conceito. Inovar significa melhorar, facilitar ou simplificar algum processo a fim de obter resultados mais rápido ou com maior eficácia. O conceito é simples, mas a prática nem tanto. Inovar exige métodos e processos bem organizados.
Investimento
Seja em tecnologias, em aprendizado, em profissionais capacitados ou em consultorias terceirizadas, em algum momento será necessário investir para dar passos mais largos na jornada de transformação e digitalização do escritório. Por isso é imprescindível planejar, assim os gastos serão calculados e direcionados a recursos realmente eficientes.
Integração de Tecnologias
A disponibilidade de recursos tecnológicos é vastíssima atualmente. O Direito 4.0 se utiliza de diversos desses recursos, muitas vezes combinados entre si. Selecionar as tecnologias mais adequadas a cada escritório é um dos maiores desafios. Além de um criterioso mapeamento de processos, será necessário pesquisar muito bem os inúmeros fornecedores.
Segurança da Informação
Quanto mais o escritório avança na jornada do Direito 4.0 mais dados serão produzidos interna e externamente. Zelar pela segurança dos dados pessoais, institucionais, operacionais e transacionais exige uma governança bem estruturada.
Cultura Organizacional
Embora as tecnologias seja indispensáveis ao Direito 4.0 elas compõe apenas uma parcela desse conjunto. Antes dos recursos tecnológicos e dos métodos, o ativo mais importante para a transformação do escritório é a Cultura Organizacional amparada em uma mentalidade digital.
Capacitação contínua
A Transformação Digital é um processo que tem início, mas não terá fim. Para conhecer os métodos, processos, conceitos e tecnologias envolvidos é necessário muita disposição para aprender. Aqui entra em cena o LifeLong Learning, ou aprendizado autônomo ao longo da vida. Esta prática faz todo sentido nessa Era da Informação que estamos vivenciando.
O Direito 4.0 nada mais é do que a jornada de Transformação Digital.de cada advogada e advogado, de cada escritório. Ainda que existam métodos e processos organizados, o caminho é individual e personalizado, não existem fórmulas prontas. Nessa jornada, a direção é mais importante do que a velocidade, então não atropele etapas, mas também não adie demais o seu início. Sucesso!!